Entrevista com Ildeu de Castro Moreira

“O povo quer saber”

Nesta seção, a entrevista contou com a contribuição de Daniel Rodrigues Aroucas Garcia (editor audiovisual) e Patrícia Rangel de Sá (empresária).

 

Qual a importância da universidade pública para uma produção científica independente?

(Ildeu) No Brasil, ela é essencial, Grande parte da pesquisa científica aqui produzida é feita nas universidades públicas e é, em particular, resultante dos cursos de Pós-graduação. Se analisa a qualidade da pesquisa produzida, as universidades públicas também se sobressaem muito. Há outras instituições de pesquisa importantes – quase todas públicas, como Embrapa, Fiocruz, IMPA, INPA, CBPF etc – , e que também produzem pesquisa de qualidade. Nas universidades existe ainda maior independência para se produzir pesquisas, sem as exigências de uso imediato e direcionado, e (ainda) com raros cerceamentos políticos.

 

A civilização ocidental tem como pilares fundamentais o cristianismo e o cientificismo. Religião e ciência devem amar-se, odiar-se ou ignorar-se? Comente.

(Ildeu) Devem conviver, como domínios diferentes da interação dos seres humanos com a natureza, com a sociedade e com si mesmos. As pessoas e instituições que praticam essas dimensões devem se respeitar, o que é uma exigência essencialmente humanista. Embora historicamente isto não tenha sido fácil, em particular para a ciência que enfrentou, em muitos momentos, a “ira santa”. Hoje ainda permanecem zonas de atrito, já que muitas visões negacionistas estão escoradas em visões religiosas fundamentalistas. Há, por outro lado, muitas tentativas artificiais, a meu ver, de aproximação forçada entre ciência e religião, embora algumas delas sejam bem lucrativas para seus promotores. Mas são domínios diversos e há que tomar cuidado para não se produzir uma combinação insossa ou destituída de sentido. A ciência não prova que Deus existe. Também não é de sua lavra provar o contrário.

 

A expressão ‘física quântica’ passou a ser usada por diversos grupos como ‘prova científica’ de algumas atividades e conhecimentos que não tem embasamento no método científico. Por que acontece essa confusão e como explicar a um leigo o conceito correto da física quântica?

(Ildeu) A física, como uma ciência bem-sucedida ao longo dos tempos ao fazer previsões que se verificavam e ao construir aparatos que funcionavam ganhou um grande prestígio social, em especial nos últimos três séculos. Tornou-se, assim, um modelo paradigmático que outras ciências buscavam imitar. Desde o século XVIII a astronomia e a física eram apresentadas e exploradas como modelos para as outras ciências e para as ideologias dominantes. A mecânica quântica foi um ápice na conquista do conhecimento sobre a natureza e a matéria, com um impacto imenso na sociedade atual. O enorme sucesso da ciência e de suas aplicações fez com que ela fosse explorada ideologicamente como modelo para convencer as pessoas sobre conceitos, ideias, objetos, compras, teologias, filosofias, modas, sistemas políticos, etc. Esta exploração da mecânica quântica – muitas vezes bem lucrativa, exceto para os físicos que a geraram – está escorada, acho, em dois pilares principais: o enorme sucesso da teoria e seu caráter difícil, abstrato e que desafia muito do chamado senso comum ou até da nossa intuição, que foi construída ao longo de milênios no processo evolutivo. Como explicar a um leigo os conceitos corretos da física quântica? Deixo isto para os colegas mais capazes do que eu falarem…

 

As pessoas comuns têm medo da ciência e dos cientistas?

“Precisa perder o medo da musa
Precisa perder o medo da ciência
Precisa perder o medo da perda
Da consciência
O que se vê não se via
O que se crê não se cria”

Trecho da música “Medo” de Marcelo Fromer / Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho / Antonio Carlos Liberallo Bellotto

(Ildeu) Não sei mensurar isto direito. A grande maioria dos brasileiros, as pesquisas mostram isto, acham que a ciência trouxe muito mais benefícios que malefícios para as pessoas e para a sociedade. Grande parte delas confia nos cientistas, embora achem que a ciência e suas aplicações podem ser perigosas. É natural que, quando não se conhece bem com funciona e o que é, surjam temores; ainda mais porque as pessoas sabem que ciência significa poder. Poder que pode ser usado para melhorar a vida de todos, mas também para explorar, impactar a natureza, dominar, destruir e até matar. Acho que as alternativas são: melhorar muito a educação em ciências, para que as pessoas consigam entender melhor o fazer científico e como a ciência funciona, promover uma ciência cidadã que leve a um maior compartilhamento do conhecimento e democratizar as decisões maiores da sociedade, relativas à C&T, que a impactam profundamente.

 

Qual a razão do sucesso relativo da astrologia e homeopatia na sociedade?

(Ildeu) Há muitos estudos sobre isto e não sou “expert” no assunto. Mas as pessoas querem e anseiam por ter indicações sobre sua vida, sua saúde, seu futuro. A astrologia esteve na raiz da astronomia muitos séculos atrás. A medicina dependeu também, antes de sua fase mais científica, que surge a partir de meados do século XIX, de muitas técnicas improvisadas, tentativas empíricas, artes, sortilégios e sorte. A homeopatia, e a astrologia muito menos, não atendem aos requisitos para constituírem conhecimento científico abalizado. Mas é sempre bom lembrar que a ciência não tem resposta para tudo. Há inúmeras lacunas no conhecimento científico, e nesse momento de pandemia isso emerge de forma mais clara. Como emerge também a enorme importância da ciência que, com todas as limitações e incertezas, é o instrumento essencial para salvar vidas. Nesses momentos cruciais, exceto os negacionistas mais empedernidos, quase todos querem a vacina e os cuidados médicos e hospitalares são mais buscados e valorizados que as preces e despachos.