Sistemas Turbulentos como Gases de Vórtices
Circulação é um observável particularmente importante na modelagem de diversos fenômenos da dinâmica de fluidos. Esta quantidade, definida como a integral do campo de velocidades em um contorno fechado, nos ajuda a entender como os furacões se formam e se deslocam, a estrutura quantizada de vórtices superfluidos, as volutas de vapor que emanam de uma xícara de chá, a força que sustenta um avião em voo e uma infinidade de outros exemplos igualmente impressionantes, que podem ser encontrados até mesmo em escala cosmológica. Não resisto a mencionar, no contexto do esporte, o mítico golpe de folha-seca de Didi, lindamente discutido em um trabalho de IC supervisionado pelo prof. Carlos Aguiar do IF-UFRJ [1].
Não esperaríamos, naturalmente, que o observável circulação tivesse papel menor no estudo das características estatísticas da turbulência. De fato, visualizações de escoamentos turbulentos obtidas a partir de simulações numéricas nas décadas de 1990 e 2000, apontaram de forma muito clara que a maior parte da energia cinética turbulenta está associada a estruturas vorticosas alongadas, entrelaçadas na forma de uma miríade de pequenos “tornados”. Um escoamento turbulento pode ser afigurado, portanto, como um “gás de vórtices”, fato posteriormente corroborado em laboratório, com o auxílio de instrumentação óptica relativamente recente. Parafraseando Feynman, não basta termos à mão equações dinâmicas de evolução; é importante ver o que elas produzem para avançar no conhecimento. E as equações de Navier-Stokes produzem regimes turbulentos povoados de vórtices.
No cenário teórico, ainda pela década de 1990, Migdal [2] lançou uma proposta audaciosa, na qual métodos matemáticos usados em cromodinâmica quântica para a discussão do problema de confinamento de quarks poderiam ser empregados para a determinação das probabilidades de eventos extremos (flutuações intensas) da circulação turbulenta. A previsão essencial do trabalho de Migdal é a de que tais probabilidades deveriam ser completamente determinadas pelas superfícies mínimas limitadas pelo contorno de circulação. Superfícies mínimas são o encanto de muitos matemáticos que a elas se dedicam com devoção [3] e das crianças que brincam com filmes de sabão estendidos por contornos de arame.
Avanços na modelagem da turbulência via circulação, entretanto, tem sido historicamente muito difíceis. No curto período que vai de 2019 a 2021, como fruto de simulações numéricas em plataformas computacionais de última geração [4,5], o muro aparentemente intransponível da observação (in silico) dos eventos extremos da circulação foi quebrado pela primeira vez. Superfícies mínimas de fato determinam a ocorrência desses eventos, porém não exatamente na concepção original de Migdal (a variável de circulação deve ser reescalada de forma conveniente para que as superfícies mínimas “brotem” na definição das caudas das distribuições de probabilidade da circulação). O resultado é um marco de enorme importância em turbulência.
Motivados pelo trabalho pioneiro de Iyer et al. em 2019 [4], arregaçamos as mangas, ainda naquele ano, em colaboração com o prof. Rodrigo Pereira (IF-UFF), o Dr. Gabriel Apolinário (pós-doutor na École Normal Supérieure de Lyon) e Victor Valadão (doutorando do IF-UFRJ), para introduzir um modelo estatístico que procurasse reproduzir os resultados numéricos mencionados acima, a partir da formulação estrutural da turbulência como um gás de vórtices. O trabalho, iniciado um pouco antes da pandemia de covid-19, a atravessou, a todo vapor, no esquema de colaboração remota. Propomos uma nova maneira de olhar para um escoamento turbulento por meio de cortes bidimensionais do campo de velocidades (algo que remete, por analogia, às seções de Poincarè dos sistemas dinâmicos). Como resultado dessa estratégia de análise, emerge um modelo dimensionalmente reduzido de vórtices planares, com o qual podem-se discutir, com sucesso, as flutuações turbulentas de circulação. O artigo, publicado como uma rapid communication na Physical Review E [6], inspirou imediatamente extensões para turbulência quântica, em estudos liderados pelo grupo do Observatoire de la Côte d’Azur [7,8].
Nossos resultados abrem caminhos interessantes para o entendimento do comportamento de escala anômalo da turbulência, tal como previsto pela (suposta) estrutura multifractal do campo de velocidades (trabalho de Frisch e Parisi [9], indicado por este último em sua Nobel Lecture [10]), bem como para o papel das superficies mínimas no contexto da física da circulação, desafio teórico ainda em aberto.
A fim de destacar tais avanços, como reconhecimento da importância desse primeiro movimento de resultados recentes no desenvolvimento de novas perspectivas na teoria da turbulência, fui gentilmente convidado pelos editores dos Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) para submeter um artigo [11] que recomendo ao leitor/leitora interessado/a em um primeiro contato com a literatura relacionada.
Texto de Luca Moriconi
Acesse o artigo aqui: acesso pago, ArXiv
[1] C.E. Aguiar e G. Rubini, Rev. Bras. Ens. Fís. 26, 297 (2004).
[2] A. A. Migdal, Loop equation and area law in turbulence in Quantum Field Theory and String Theory, NATO ASI Series [Series B: Physics], editado por L. Baulieu , V. Dotsenko , V. Kazakov , P. Windey, Springer, Boston, MA, 328, 193–231 (1995).
[3] T.H. Colding e W.P. Minicozzi II, A Course in Minimal Surfaces, Graduate Texts in Mathematics 121, The American Mathematical Society (2011).
[4] K.P. Iyer, K.R. Sreenivasan e P.K. Yeung, Phys. Rev. X 9, 041006 (2019).
[5] K.P. Iyer, S.S. Bharadwaj, K.R. Sreenivasan, Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 118, e2114679118 (2021).
[6] G.B. Apolinário, L. Moriconi, R.M. Pereira e V. J. Valadão, Phys. Rev. E 102, R041102 (2020).
[7] N.P. Müller, J. Polanco e G. Krstulovic, Phys. Rev. X 11, 011053 (2021).
[8] J. Polanco, N.P Müller e G. Krstulovic, Nat. Commun. 12, 1 (2021).
[9] U. Frisch e G. Parisi, em: Turbulence and Predictability in Geophysical Fluid Dynamics and Climate Dynamics, Varenna Summer School LXXXVIII (1983), editado por M. Ghil, R. Benzi e G. Parisi, North-Holland, New York (1985).
[10] G. Parisi, Multiple Equilibria, https://www.nobelprize.org/prizes/physics/2021/parisi/lecture/ (2021).
[11] L. Moriconi, Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 118, e2117968118 (2021).