Antes mesmo de começarmos as perguntas, ele agradeceu…
(Ildeu) Agradeço a vocês pela gentileza da entrevista e os parabenizo pela iniciativa de estimular a comunicação do IF (Instituto de Física – UFRJ). Um desafio adicional, que vocês me proporcionaram, foi o de tentar responder a série de perguntas complexas e difíceis que vocês me fizeram aqui! Como só posso responder com muitas limitações próprias, já me desculpo a priori por elas.
(CCom) Qual o principal desafio de um defensor da ciência no Brasil?
(Ildeu) Fiquei contente pela premiação recebida, que resulta da atuação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC. Mas duas reflexões me vieram à mente, uma vez que essa titulação individual não me parece muito apropriada. A primeira é que o mérito dela deve ser compartilhado com muita gente da SBPC e de outras sociedades científicas, e com um grande número de pesquisadores, professores e estudantes, que lutam cotidianamente para defender e praticar a ciência. E praticá-la bem é uma forma essencial de defendê-la. A segunda é torcer para que a premiação possa ser desnecessária um dia, porque a ciência estará valorizada e desenvolvida o suficiente em nosso país para não precisar mais de defensores. Talvez o principal desafio, não meu, mas de todos nós, seja fazer com que a ciência se estabeleça de fato no Brasil. Desafio grande, a exigir muita gente e tempo, para as próximas décadas vindouras. Mas importante é prosseguir nesta senda. Precisamos empolgar os jovens nesta direção e conquistarmos para nossa causa milhões de brasileiros, que não constituem o 1% (um por cento) privilegiado que tem mandado de fato e demonstrado sua insensibilidade, mas que deveriam tomar os rumos do país em suas mãos e construir um projeto de país diferente e muito melhor, no qual a ciência e a educação tivessem um lugar de destaque.
(CCom) Ildeu, num país deteriorado socialmente como o Brasil, como convencer o cidadão que ciência é importante? Aliás, ciência é importante?
(Ildeu) É importante. Não sei bem o que se quer dizer com “país deteriorado socialmente”. Como convencer a pessoa? Mostrando para ela – via educação escolar e via divulgação científica – que a ciência importa, e muito, para a vida de cada um e para a coletividade. Não só economicamente, mas também culturalmente. E, também, fazendo com que a Ciência e Tecnologia – C&T produzida contribua, de fato, para a melhoria da vida das pessoas e para o país avançar.
(CCom) Qual o principal problema da ciência no Brasil? E qual a solução?
(Ildeu) Cada pessoa que reflete sobre isto tem ideias sobre qual seria o problema (ou os problemas) mais importante (s). Possivelmente muitos terão razão, porque o que não nos falta são problemas graúdos. Neste momento, a questão emergencial, a meu ver, é reverter o processo de desmonte da ciência brasileira que estamos vivendo, com reduções absolutamente drásticas de recursos. Não só da C&T, evidente; a desconstrução é bem mais ampla. Quanto a problemas estruturais permanentes posso citar três que me parecem cruciais:
(1) melhorar significativamente a educação básica, em particular a educação em ciências;
(2) diminuir a burocracia, que é um empecilho muito grande para a ciência e para a inovação;
(3) integrar as políticas de C&T dentro de um projeto nacional que busque desenvolver sustentavelmente o país, aproveitar suas potencialidades, estimular a inovação tecnológica e a inovação social, e reduzir nossas imensas desigualdades sociais e econômicas.
Solução eu não tenho. Mas intuo que só se pode chegar lá com a atuação de muita gente e o envolvimento/participação de uma parcela significativa dos brasileiros. Entre os quais os pesquisadores, professores e estudantes têm um papel de destaque. E devem assumi-lo.
(CCom) Você acha que o “jeitinho brasileiro” ajuda ou atrapalha no fazer científico?
(Ildeu) Não sei. Mesmo porque não sei bem com qual conotação o termo foi aqui utilizado. Pode ser criativo, o que é muito bom para o fazer científico. Fazer gambiarras inteligentes e inovar mesmo em ambientes inóspitos, como muitas vezes os brasileiros se distinguem. Se for visto como um jeito para escamotear as coisas, com um caráter de enganação implícito, como ocorre com frequência em meios políticos e de poder, pode não funcionar porque a ciência tem um pré-requisito fundamental: há que combinar com a natureza, e ela parece que não é chegada a “jeitinhos”. E como a ciência é uma atividade humana, é importante também que ela se mova por parâmetros éticos, que o “jeitinho” deve respeitar.
(CCom) Qual sua opinião sobre fazer divulgação científica?
(Ildeu) É muito importante que a comunidade científica e acadêmica a faça. Este compartilhamento do conhecimento com a sociedade é, e Einstein dizia isto em 1924, uma obrigação social da ciência e dos que a praticam. Não necessariamente cada pesquisador ou estudante tem de fazer divulgação, mas é essencial que as universidades e instituições de pesquisa a valorizem, estimulem e pratiquem. O IF, e isto é um mérito histórico importante, trouxe contribuições significativas para a divulgação científica no Rio e no Brasil, em vários momentos nas últimas décadas. Mas há que valorizar bem mais este tipo de atividades institucionalmente, mantida a preocupação com a qualidade, que deve estar sempre presente na pesquisa, no ensino e na extensão. Se a instituição não o fizer adequadamente, isto atrapalha; mas as pessoas aficionadas, em particular os jovens, continuarão a fazer assim mesmo, porque achamos importante e gostamos de fazê-lo.
(CCom) Cargos importantes na estrutura administrativa dos setores de educação, ciência e cultura vêm sendo ocupados por autodeclarados criacionistas, negacionistas, revisionistas etc. O que você acha disso? Como trazê-los para o debate científico? Há espaço para o debate?
(Ildeu) No geral, sim, e devemos utilizá-lo. A ciência não pode ser vista como uma estrutura dogmática. Ela se escora na curiosidade, na dúvida, no questionamento permanente, no debate aberto de ideias. Não pode ser confundida com crença religiosa, porque não o é. Acho que devemos debater e tentar convencer a todos que pensam ou que têm visões, às vezes, deturpadas sobre o que é a ciência e de como o conhecimento científico é construído. Já tive debates ou embates interessantes com criacionistas, por exemplo, ou pessoas que acreditam em horóscopos ou superstições várias. Acho importante tentar entender as razões históricas, filosóficas, visões de mundo, concepções religiosas que estão por trás dessas concepções. A história da ciência nos mostra que seu caminho é tortuoso e os indivíduos que a constroem estão também imersos em seu tempo e nas visões da época. Basta lembrar Newton. É importante também não se construir uma imagem idealizada da ciência como se fosse necessariamente a “verdade absoluta” e intrinsecamente neutra. Ou seja, defendo que discutamos com (quase) todos e respeitemos as pessoas. Isto é importante inclusive no trabalho de convencimento, assim como discutir também o contexto de produção da ciência, os fatores que a influenciam, seus usos e desusos.
Agora há uma parcela de pessoas na sociedade, que acho que apesar de barulhenta e vociferante é diminuta, que adere a posições negacionistas por ideologia e com posturas claramente fascistas, às vezes escoradas também em interesses econômicos, e que se opõem frontalmente ao conhecimento científico. Com estes é muito difícil o debate de convencimento. Nesse caso, há que vencê-los mais do que convencê-los. Veja que há vários tipos de negacionismos: o terraplanismo geográfico, que amassa a Terra; o negacionismo científico, que abarca várias dimensões; o negacionismo sanitário, com implicações sérias na pandemia; o terraplanismo econômico vigente, uma visão extremamente redutora e geradora de privilégios, que coloca “Mercado”, “ajuste” e “equilíbrio” fiscal acima de qualquer coisa, até da vida dos brasileiros e das evidências econômicas. Esses negacionismos também matam.
(CCom) Como você avalia a condução do atual governo com respeito ao financiamento de pesquisa científica? Temos sofrido derrotas no congresso, por exemplo, o contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT. Qual o papel da sociedade nisso tudo? E o que a sociedade pode fazer pra ajudar? Recebemos campanhas, pedidos para envio de e-mails a deputados, manifestações virtuais, etc? Isso não é enxugar gelo? Um deputado realmente “ouve” esses pedidos?
(Ildeu) Vou separar as perguntas, porque me parece que misturam algumas coisas de natureza diversa.
“Como você avalia a condução do atual governo com respeito ao financiamento de pesquisa científica?”
Péssima.
“Temos sofrido derrotas no congresso, por exemplo, o contingenciamento do FNDCT”:
Esta informação não está correta. A gente teve uma vitória importante e expressiva na votação que derrubou o veto do Presidente da República que mantinha a Reserva de Contingência deste fundo, desviando 90% (noventa por cento) dos seus recursos para outras finalidades que não Ciência, Tecnologia e Inovação – CT&I. Só que o governo, com a conivência aparente de parte dos parlamentares, ainda insiste em não liberar os recursos, mesmo com a lei aprovada. Por isto, continuaremos batalhando.
“Qual o papel da sociedade nisso tudo? E o que a sociedade pode fazer para ajudar?”
Pode ajudar de várias formas, uma delas é participando das entidades da sociedade civil, como sociedades científicas de sua área, associações de estudantes e de professores, conselhos profissionais, sindicatos, etc. Debater com os colegas, sugerir ideias, difundir informações qualificadas, usar as redes sociais para informar e mobilizar pessoas, participar e organizar manifestações coletivas (nestes momentos virtuais, mas daqui a algum tempo não mais). A sociedade civil brasileira é frágil, por isto sofremos tantas derrotas e tantas imposições de autoridades que respondem a uma parcela muito pequena de poderosos. Basta ver, por exemplo, o processo de organização e participação social e política em alguns países europeus avançados socialmente para entender porque a qualidade de vida lá é bem melhor e com desigualdades muito menores.
“Recebemos campanhas, pedidos para envio de e-mails a deputados, manifestações virtuais, etc? Isso não é enxugar gelo? Um deputado realmente “ouve” esses pedidos?”
Não acho que seja “enxugar gelo” embora muitas vezes fracassemos em nossas demandas e lutas. Em alguns momentos tivemos vitórias importantes com a nossa mobilização. Por exemplo, quando levamos ao Congresso, em 2019, um milhão de assinaturas contra a extinção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e em defesa do recurso para pagar as bolsas, isto fez diferença e ganhamos aquela batalha específica. O presidente da Câmara nos recebeu, assim como lideranças de quase todos os partidos, inclusive da base do governo e buscaram uma solução em função da pressão política exercida. O mesmo ocorreu recentemente com a batalha peço FNDCT. Mas, claro, há que se construir força política para mudar as coisas e isto não se faz de uma hora para outra ou com pouca gente. Estamos permanentemente e há anos atuando no Congresso Nacional. Podem ter certeza que os deputados “ouvem” muitos pedidos. São hábeis nisto. Só que uma grande parte decide em prol dos que falam mais alto. Podem colocar vários sentidos neste “alto”. Um deles é o sonante tradicional.
(CCom) Você não acha que a intelectualidade brasileira está inerte e, principalmente, com medo de reagir aos assombros de um governo de direita? Não estamos todos muito quietos, Ildeu?
(Ildeu) Estamos. Se estivéssemos mais atuantes e a situação não teria chegado aonde chegou, com o descalabro na condução da pandemia, da economia e das questões sociais. A intelectualidade, os artistas, cientistas, professores, estudantes, servidores públicos e outros profissionais têm um papel importante claro e devem se organizar, manifestar e atuar para resistir a esta onda forte de extrema-direita e de desconstrução do país. Mas há outros setores sociais igualmente importantes que estão muito quietos, por razões às vezes fortes e repressões variadas, como trabalhadores, empresários, profissionais liberais, pessoal do campo, etc. É importante lembrar também que este processo não começou agora e que o autoritarismo e a faceta antidemocrática têm uma raiz profunda na história do país. E não basta dizer “BASTA” isto ou aquilo para a grande maioria da população que está vivendo em situações dificílimas, embora a resistência seja obviamente importante. Há que dizer também o que se deve fazer para superar as graves crises nas quais estamos imersos. E convencer as pessoas, em um momento de desesperança, que podemos mudar as coisas. Principalmente se estivermos atuando de forma mais integrada e coletiva.
(CCom) O Brasil tem cinco Copas do Mundo e nenhum prêmio Nobel. Não temos capacidade para tal? Onde erramos?
(Ildeu) Acho que usar o indicador de se ter ou não prêmio Nobel (PN) é uma visão parcial para traduzir a capacidade científica de um país. É um prêmio evidentemente muito importante (em particular nas áreas de Física, Química, Medicina e Fisiologia); porém ficou um pouco defasado no tempo, porque a ciência mudou muito nos últimos 120 anos. Ela é um empreendimento cada vez mais coletivo e menos individualizado. Veja por exemplo como funcionam os grandes laboratórios de física e as cooperações em pesquisa no mundo inteiro, que envolvem muita gente. Uma pequena correção: temos um prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia que nasceu em Petrópolis, em 1915; foi educado, é verdade, na Inglaterra, para onde foi quando era ainda criança, mas com o dinheiro dos cariocas que compravam objetos na Ótica Inglesa, propriedade de seu pai por décadas. No Museu Nobel em Estocolmo está escrito: Peter Brian Medawar, nascido no Rio de Janeiro (erradamente porque foi em Petrópolis). Foi um extraordinário cientista, escritor e divulgador da ciência. Também tivemos brasileiros premiados no Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC, há alguns anos. Tivemos outros indicados com méritos para receber o PN, com certeza, como foi o caso de Cesar Lattes e Carlos Chagas, mas fatores diversos não o permitiram. E o Artur Ávila, que estudou na UFRJ, é Medalha Fields de matemática.
Para contestar um pouco mais a “síndrome do Prêmio Nobel”: quantos PN tem a China, hoje o segundo país do mundo em avanço científico e caminhando celeremente para ultrapassar os EUA? Apenas seis, ou seja, muito menos que a Austrália ou a Polônia. A Coreia do Sul tem apenas um PN, e da Paz. Não acho que seja um indicador preciso de avanço científico, embora retrate certamente contribuições individuais extremamente expressivas. Até a II Guerra Mundial fazia até mais sentido pelo tipo de produção da ciência existente. Mas como o PN mensura a ciência atualmente? A Argentina tem 5 (cinco) PN. Será que a ciência argentina é hoje tão melhor que a brasileira? Outra constatação: a Alemanha teve, até 1933, 38 (trinta e oito) PNs. Isto não impediu que o país fizesse uma escolha negacionista em vários aspectos, inclusive genocida, que levou milhões de pessoas à morte e à bancarrota do próprio país. Não vou mencionar os PNs da Paz e da Economia porque suas escolhas são particularmente eivadas de fatores ideológicos e políticos. Quem está crescendo enormemente na economia mundial? Vocês conhecem algum PN de economia que seja chinês ou coreano?
Insisto que não quero diminuir a importância do Prêmio Nobel, mas apontar que, sendo um prêmio de destaque para cientistas individuais, é apenas um indicador parcial de avanço científico e deve ser considerado com um grão de sal ao se comparar a ciência dos países.
Na comparação com a Copa do Mundo, é bom lembrar que o país tem (ou tinha) campos de futebol espalhados por todos os cantos de seu território, nas escolas, favelas, cidades do interior e vilarejos rurais. Mas quantas escolas e espaços equipados com bibliotecas, com laboratórios, com microscópios e lunetas, com computadores e internet, com professores bem preparados nós temos?
(CCom) Como um teórico do Caos, o Brasil está perdido?
(Ildeu) Não acho que esteja perdido, de nenhum modo. Tem um potencial imenso em sua gente, em sua natureza e em seu território. O futuro não está dado e a gente contribui decisivamente para a sua construção. Lembro-me da expressão famosa de Dennis Gabor, prêmio Nobel de Física de 1971, pela invenção e aperfeiçoamento da holografia; “o futuro não pode ser previsto, mas futuros podem ser inventados.” É isto, há muitos futuros que podem ser inventados/construídos. Qual se realizará nestas bandas, depende de nossa vontade e de nossas ações. Como mineiro, não posso deixar de registrar o que profetizou Carlos Drummond de Andrade na mesma linha gaboriana: “– Ó vida futura! Nós te criaremos.” Trabalhei, anos atrás, com aspectos da teoria de sistemas não lineares, casos não-integráveis, que recebeu a designação genérica de “teoria do caos”. Mas acho que as teorias físicas, mesmo que possam estimular algumas ideias e analogias, não dão, nem de longe, conta da complexidade dos fenômenos sociais, em particular da situação brasileira. A física trabalha com modelos simplificados, e este é uma das razões de seus êxitos preditivos, e a sociedade humana é um sistema hipercomplexo. Com nossa mistura de culturas, de dominações, de violência, de explorações as mais diversas, com nossa diversidade e com a história multifacetada do país, talvez nem uma TGZ – Teoria Geral da Zorra – dê conta. Mas, nesta veia humorística, talvez seja bom relembrar o Barão de Itararé: “O Brasil é feito por nós. Está na hora de desatar esses nós.”
A entrevista continua na página 2.