Teoria Cinética dos Gases
O modelo de Bernoulli
Daniel
Bernoulli, em 1738, foi o primeiro a entender a pressão atmosférica
em termos moleculares. Ele imaginou um cilindro vertical, fechado com um
pistão no topo, o pistão tendo um peso sobre ele, ambos o
pistão e o peso sendo suportados pela pressão dentro do cilindro.
Ele descreveu o que ocorria dentro do cilindro da seguinte forma: "imagine
que a cavidade contenha partículas muito pequenas, que movimentam-se
frenéticamente para lá e para cá, de modo que quando
estas partículas batam no pistão elas o sustentam com repetidos
impactos, formando um fluido que expande sobre si caso o peso for retirado
ou diminuido ..." É triste dizer que seu relato, apesar de correto,
não foi aceito de maneira geral. A maioria dos cientistas acreditavam
que as moléculas de um gás estavam em repouso, repelindo-se
à distância, fixas de alguma forma por um éter. Newton
mostrou que PV = constante era uma consequência dessa
teoria, se a repulsão dependesse inversamente com o quadrado da
distância. De fato, em 1820 um inglês, John Herapath,
deduziu uma relação entre pressão e velocidade molecular
dada abaixo, e tentou publicá-la pela Royal Society (a acadmeia
de ciências britânica). Foi rejeitada pelo presidente, Humphry
Davy, que replicou que igualando pressão e temperatura, como feito
por Herapath, implicava que deveria existir um zero absoluto de temperatura,
uma idéia que Davy relutava em aceitar.
O elo entre energia molecular e pressão
Não é dificil extender o modelo de Bernoulli
em termos de uma descrição quantitativa, relacionando
a pressão de um gás com as velocidades moleculares. Como
um exercício, vamos considerar uma partícula de massa m,
movimentando-se rapidamente de um lado para outro com velocidade
v
dentro de um cilindro estreito de comprimento L com um pistão
em um extremo, de modo que todo o movimento é ao longo da mesma
direção. Obviamente, o pistão não sente
uma força contínua, mas uma série de impactos igualmente
espaçados. No entanto, se o pistão for muito mais pesado
que a partícula, isto terá o mesmo efeito que uma força
suave durante tempos longos comparados com o intervalo entre os impactos.
Usando a lei de Newton na forma força = taxa de
variação do momento, vemos que o momento de uma partícula
muda de 2mv a cada vez que ela atinge o pistão. O tempo
entre impactos é 2L/v, de modo que a freqência
entre impactos é v/2L por segundo. Isto significa
que se não houvesse uma força de equilíbrio, por conservação
de momento a partícula iria causar uma mudança no momento
da pistão de 2mv.v/2L unidades por segundo.
Isto é a taxa de variação do momento, e logo deve
ser igual à força de equilíbrio, que é portanto
Agora podemos generalizar ao caso de muitas partículas
que movimentam-se frenéticamente dentro de uma caixa retangular
de comprimento L na direção x (que é
ao longo de uma das arestas do cubo). A força total em um lado de
área A perpendicular à direção x
é
a soma de cada termo devido a uma partícula, sendo que o que importa
é a velocidade na direção x.
A pressão é a força por unidade
de área,
P = F/A. É claro que não
sabemos qual são as velocidades verdadeiras das moléculas
em um gás, mas vamos ver que não precisamos destes detalhes.
Se somarmos N contribuições, uma para cada partícula
da caixa, cada contribuição sendo proporcional a vx2
para cada partícula, a soma resulta em N vezes o valor
médio de vx2. Isto é,
[7.2]
onde existem N partículas em uma caixa
de volume V.
No próximo passo notamos que as partículas
estão igualmente se movendo em todas as direções,
de modo que o valor médio de vx2
deve ser o mesmo que os de vy2 ou vz2,
e como v2 = vx2 + vy2
+ vz2, obtemos que
[7.3]
Isto é um resultado impressionantemente simples! A
pressão macroscópica de um gás é diretamente
relacionada à energia cinética média por molécula.
É claro que não consideramos as complicações
devido às interações entre as partículas, nosso
resultado serve para gases como o ar em temperatura ambiente já
que estas interações são muito pequenas. Além
do mais, é bem conhecido experimentalmente que a maioria dos gases
satisfazem a lei dos gases ideais sob um grande intervalo de temperatura
para n moles de gás, isto é, n
= N/NA, com NA igual ao
número de Avogadro e R a constante do gás.
Introduzindo a constante de Boltzmann k = R/NA,
é fácil combinar nosso resultado para a pressão e
a lei dos gases ideais para obtermos que a energia cinética média
molecular é proporcional à temperatura absoluta,
[7.5]
A constante de Boltzmann é k = 1,38 x 10-23
joules/K.
A distribuição de velocidades de
Maxwell
Cerca de 1850, várias dificuldades com as teorias
existentes de calor, tais como a teoria calórica, levaram
algumas pessoas a olharem novamente para a teoria cinética de
Bernoulli, mas pouco progresso foi realizado até que Maxwell atacou
o problema em 1859. Maxwell trabalhou com o modelo de Bernoulli,
em que os átomos ou moléculas em um gás sofrem colisões
elásticas entre si, obedeçem às leis de Newton,
e colidem umas nas outras (e nos lados dos recepientes) com trajetórias
em linha reta antes das colisões (Na realidade as colisões
são um pouco ineláticas com os lados -- as moléculas
podem excitar ou de-excitar vibrações nas paredes, isto é
a maneira com a qual o gás e o recepiente entram em equilíbrio
térmico). Maxwell observou que era praticamente impossível
tentar analisar o sistema usando as leis de Newton, mesmo que isto possa
ser feito em princípio. O problema é que existem muitas variáveis
para só para começar a escrever as equações.
Por outro lado, ele observou que uma descrição completa de
como cada molécula se move não é necessária.
O que era necessário era alguma compreenssão de como
este modelo microscópico estava conectado com as propriedades macroscópicas
, que representam as médias de um número enorme de moléculas..
A informação microscópica relevante
não é o conhecimento das posições e velocidades
de cada molécula a cada instante de tempo, mas a sua função
distribuição. Isto é o mesmo que dizer que percentagem
de moléculas estão em uma certa parte do recepiente, e que
percentagem possuem velocidades dentro de certo intervalo, a cada instante
de tempo. Para um gás em equilíbrio térmico,
a função distribuição é independente
do tempo. Ignorando pequenas correções devido à
gravidade, o gás se distribuirá uniformemente no recepiente,
de modo que o único dado desconhecido é a função
distribuição de velocidade.
Maxwell encontrou que a distribuição de
velocidade das moléculas de gás em equilíbrio térmico
pelos seguintes argumentos baseados em simetria. Para um gás
de N partículas, seja Nf(vx)dvx
o
número de partículas tendo velocidade na direção
x entre vx e vx + dvx
.
Em outras palavras, f(vx)dvxé
a fração de todas as partículas que possuem velocidade
na direção x dentro no intervalo entre vx
e vx + dvx.
Mas, não existe nada especial com relação
a direção x -- para moléculas em um recepiente
fechado, pelo menos longe das paredes, todas as direções
são iguais, de modo que a mesma função f
dará a distribuição de probabilidade para as outras
direções. A probabilidade para a velocidade ficar entre
vx
e vx + dvx, vy e vy
+ dvy,
e vz e vz
+ dvz será:
Nf(vx)dvxf(vy)dvyf(vz)dvz
= Nf(vx) f(vy) f(vz)
dvxdvydvz
[7.6]
Note que esta função distribuição,
quando integrada sobre todas as possíveis três componentes
das velocidades dá o número total de partículas
N,
como deveria ser. Agora vem a parte inteligente - como toda a direção
é tão boa quanto qualquer outra, a função deve
depender apenas da velocidade total da partícula, e não
em cada componente da velocidade separadamente. Logo, Maxwell
argumentou que,
f(vx) f(vy)
f(vz) = F(vx2
+ vy2
+ vz2)
[7.7]
onde F é uma outra função
desconhecida. No entanto, é aparente que o produto das funções
na esquerda está refletida na soma das velocidades na direita. Isto
somente aconteceria se as variáveis aparecessem em um expoente
nas funções à esquerda. De fato, é fácil
verificar que esta equação é resolvida por uma função
da forma:
[7.8]
onde A e B são constantes arbitrárias.
De acordo com Maxwell, devemos por um sinal menos no expoente porque
deve existir menos partículas à medida que vamos para
velocidades mais altas -- certamente não um número divergente
que resultaria se o sinal fosse o contrário. Multiplicando as dsitribuições
de velocidades para as três direções temos a distribuição
em termos da velocidade da partícula v. No entanto,
a função distribuição natural é aquela
que dá o número de partículas possuindo velocidade
entre v e v + dv.
É importante imaginar uma distribuição
de partículas no espaço de velocidades, um espaço
tri-dimensional (vx, vy, vz),
onde cada partícula é representada por um ponto tendo coordenadas
correspondendo à velocidade da partícula. Assim, todos os
pontos que ficam em uma superfície esférica centrada na origem
correspondem à mesma velocidade. Logo, o número de partículas
possuindo velocidades entre v e v + dv é
igual ao número de pontos dentro de duas esferas centradas na origem,
com raios v e v + dv. Este é um espaço
que substitui o pequeno volume dvxdvydvz.
O volume de uma casca esférica é 4.p.v2dv.
Logo, a distribuição de probabilidade como função
da velocidade é:
[7.9]
As constantes A e B podem ser determinadas
integrando-se a distribuição de probabilidades sobre todas
as velocidades para encontrar o número total de partículas
N, e sua energia total E.
Como uma partícula movendo-se com velocidade
v
possui energia cinética ½mv2, podemos
usar a distribuição de probabilidade para encontrar a energia
cinética média por partícula:
[7.10]
O numerador é a energia total, o denominador é
o número total de partículas. Note que uma constante desconhecida
A
cancela entre o denominador e o numerador. Substituindo o valor de f(v)
nas integrais, achamos
[7.11]
Substituindo o valor da energia cinética média
em termos da temperatura do gás,
[7.12]
achamos que B = m/2kT, de modo
que
[7.13]
A constante de proporcionalidade é obtida integrando-se
sobre todas as velocidades e igualando o resultado final a unidade (já
que fatorizamos o número de partículas N na
nossa definição de f(v).) O resultado
final é:
[7.14]
Note que esta função aumenta parabolicamente
de zero para pequenas velocidades, chega a um máximo, e a partir
daí diminui exponencialmente. À medida que a temperatura
aumenta, a posição do máximo se desloca para a direita.
A área total sob essa curva é sempre unitária (isto
é, igual a um), por definição.
A distribuição de Boltzmann
Existem duas características importantes na distribuição
de Maxwell para um gás ideal que devemos enfatizar:
1. Existe em média uma energia ½kT
em cada grau de liberdade
2. A probabilidade de uma molécula ter energia
E
é proporcional a e-E/kT.
Entendemos por "grau de liberdade" um modo pelo qual a
molécula pode se mover livremente, e portanto possuir energia -
neste caso, as direções x, y, e z, resultando
na energia cinética total
3.½kT.
Boltzman generalizou estas características da distribuição
de Maxwell para sistemas grandes arbitrários. Ele foi o primeiro
a observar uma profunda conecção entre o conceito termodinâmico
de entropia e a análise estatística dos estados possíveis
de um grande sistema - que um aumento na entropia de um sistema com o tempo
é uma mudança nas variáveis macroscópicas correspondendo
ao maior número possível de rearranjos microscópicos.
Ele mostrou que os números de estados possíveis para uma
dada energia são muito maiores para valores macroscópicos
correspondendo ao equilíbrio térmico. Por exemplo, para uma
dada energia existem muito mais rearranjos microscópicos possíveis
das moléculas de gás em que o gás é essencialmente
uniformemente distribuido em uma caixa do que existem correspondendo a
todas as moléculas de gás estando no lado esquerdo
da caixa. Logo, se um litro de gás ao passar do tempo passa por
todos os estados de rearranjos microscópicos, de fato existe uma
probabilidade muito negligivel de todas elas estarem no lado esquerdo em
um tempo igual a idade do universo. Logo, se arrumarmos para que todas
as partículas estejam no lado esquerdo usando um pistão
para empurrá-las, e se removermos rapidamente o pistão, elas
rapidamente tenderão a uma distribuição espalhada
uniformemente pela caicxa.
Boltzmann provou que a entropia termodinâmica
S
de um sistema (a uma dada energia E) era relacionada ao número
W de estados microscópicos possíveis por meio de S
= k logW, onde k é a constante de Boltzmann.
A seguir, ele foi capaz de estabelecer que para qualquer sistema grande
ou pequeno em equilíbrio térmico a temperatura T,
a probabilidade de se encontrar um estado a uma energia particular
E
é proporcional a e-E/kT. Ela é
chamada de distribuição de Boltzmann.
Nota histórica: A análise de Boltzmann
para a entropia em termos de configurações microscópicas
foi ridicularizada por algumas das figuras mais poderosas do meio científico
alemão, liderado pelo famoso químico W. Ostwald, o
qual não acreditava em átomos! Boltzmann estava
oprimido por esses ataques e pela sua própria saúde fraca,
e se suicidou em 1906. Ostwald ganhou o prêmio Nobel
em 1909.
Equipartição de energia e calores
específicos
Retornando à análise de Maxwell para
o gás em uma caixa, dissemos que a energia cinética média
total por molécula é 1,5kT. Da primeira
lei da termodinâmica temos que a quantidade de calor que podemos
colocar em n moles de um gás a volume constante é
dado por
DQ = nCVDT
= DEint
(à volume constante)
[7.15]
já que o volume é constante, e nenhum trabalho
é realizado. DEint
é a energia interna do gás, em forma de energia cinética
das moléculas. Usando [7.5] temos que para um gás com NA
moléculas (1 mol) DEK/DT
= (3/2). NA k . Logo, o calor específico por molécula
é 1,5k, e como k = R/NA,
o calor específico por mole a volume constante fica
CV = 1,5R
[7.16]
De fato, isto é confirmado experimentalmente para
gases monoatômicos. No entanto, encontramos que gases com moléculas
diatômicas possuem calores específicos de 2,5R e mesmo
3,5R. Isto não é difícil de de entender - estas
moléculas possuem mais graus de liberdade. Uma molécula em
forma de alteres pode girar em torno de duas direções perpendiculares
ao seu eixo. Uma molécula diatômica também pode vibrar.
Tal simples movimento de oscilador harmônico possui tanto energia
cinética quanto potencial, e tem energia total
kT em equilíbrio
térmico. Assim, explicações razoáveis para
os calores específicos de vários gases pode ser obtida supondo
uma contribuição ½k para cada grau de
liberdade. Mas, existem problemas. Porque um alteres não pode girar
em torno de seu eixo de simetria? Porque átomos monoatômicos
não giram? E mais estranho ainda: porque o calor específico
do hidrogênio, 2,5R a temperatura ambiente, cai apra
1,5R a baixas temperaturas. Estes problemas não foram resolvidos
até o aparecimento da mecânica quântica.
Para obtermos o calor específico a pressão
constante, notamos que nesse caso a transferência de calor para o
sistema é dada por
DQ = nCPDT
(à pressão constante)
[7.16]
Como já discutimos antes, a energia interna de um
gás sómente depende de sua temperatura, logo, da primeira
lei, temos que
DEint
= DQ - DW =
nCP DT - pDV
= nCP DT - nRDT
onde na última passagem usamos a equação
dos gases ideais para calcular pDV. Usando
[7.15] e dividindo ambos os lados por nDT
temos
que
CV = CP
- R ,
ou
CP - CV = R
[7.17]
Os dados experimentais estão
em excelente concordância com a previsão acima baseada na
teoria cinética dos gases.
Movimento Browniano
Uma das demonstrações mais convincentes de
que gases são realmente feitos de moléculas rápidas
é o movimento Browniano, o movimento frenético de pequenas
partículas, tais como fragmentos de cinzas na fumaça. Este
movimento foi notado pela primeira vez por um botânico escocês,
que inicialmente supôs que esta observando criaturas vivas, mas então
observou que o mesmo movimento em partículas inorgânicas.
Einstein mostrou como usar o movimento Browniano para determinar o tamanho
de átomos.
Direitos autorais: Carlos
Bertulani (atualizada em 28/Setembro/99)