Estranheza quântica altera relações básicas de causa e efeito

Trabalho conjunto entre Brasil e Itália, publicado no prestigioso jornal Nature Physics, demonstra efeitos quânticos inesperados no cenário mais simples em inferência causal.

          Porque é que os fenômenos naturais acontecem? Porque a Natureza se comporta da maneira que nós a observamos? Estas estão entre as questões mais fundamentais da ciência e da filosofia. Se somos capazes de intervir num dado sistema, podemos modifica-lo, observar os efeitos resultantes de tal modificação, e à partir destes efeitos, inferir relações de causa e efeito. Entretanto, muito frequentemente, intervenções não são possíveis e podemos somente observar passivamente. E para complicar ainda mais, tipicamente nem todas as causas de um certo efeito serão acessíveis, quer dizer, existem fatores relevantes escondidos de nossa observação empírica. Notavelmente, mesmo assim, ainda é possível descobrir as relações causais entre eventos correlacionados se a explicação causal –quer dizer, o modelo causal– contiver um tipo especial de variável chamada de instrumento. A estrutura causal instrumental é a mais simples com a propriedade de que influências causais podem ser detectadas mesmo na presença de variáveis ocultas e sem intervenções, isto é, somente a partir de observações passivas. Isto faz com que esta estrutura seja crucial para o campo da inferência causal, com aplicações desde testes clínicos randomizados e até mesmo econometria. Com este objetivo, é fundamental se garantir que nós temos um bom instrumento respeitando restrições fundamentais conhecidas como desigualdades instrumentais. Se sabe que todo modelo causal instrumental clássico satisfaz restrições fundamentais conhecidas como desigualdades instrumentais. Até o presente trabalho, se acreditava que a violação de tais desigualdades era prova conclusiva de que o modelo causal subjacente não era instrumental. Por este motivo, as desigualdades instrumentais são usadas como teste contra “instrumentos ruins”. Desafiando este paradigma bem estabelecido, uma jovem equipe de pesquisadores mostrou que a presença de emaranhamento quântico em modelos causais instrumentais pode de certa forma falsificar influências causais e também levar à violação de desigualdades instrumentais, algo impossível dentro da física clássica.

Os professores baseados no Brasil, Rafael Chaves, do Instituto Internacional de Física em Natal, e Leandro Aolita, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, juntamente com um time baseado na Itália e coordenado pelo Prof. Fabio Sciarrino, da Universidade Sapienza em Roma, estudaram modelos causais instrumentais quânticos. Neles, a causa comum (não diretamente observável) entre dois eventos apresenta emaranhamento quântico. O emaranhamento é possivelmente a propriedade mais contra-intuitiva da mecânica quântica, sendo responsável pela infame “ação fantasmagórica à distância”, tal como Einstein e colaboradores costumavam chamá-lo. Os pesquisadores brasileiros previram teoricamente que o emaranhamento pode não somente aumentar a capacidade descritiva de modelos instrumentais mas até mesmo levar à violações de desigualdades instrumentais, fato que foi posteriormente confirmado experimentalmente pelo time italiano. Esta descoberta sacode pilares fundamentais sobre os quais a teoria clássica de inferência causal é construída. Além disso, ela é relevante também para os fundamentos da própria teoria quântica, já que o cenário instrumental é mais simples que o paradigmático cenário de Bell usado rotineiramente para observar discrepâncias entre as predições clássica e quântica. De fato, a estrutura causal instrumental é a mais simples na qual uma separação entre as predições clássicas e quânticas é possível, tal como provado agora pela equipe.

Em cenários de Bell, os testes de não classicalidade exigem que as partes envolvidas estejam espacialmente separadas, ou seja, de modo tal que o período de tempo entre os eventos de medição em ambos os laboratórios seja menor que o que levaria a luz para viajar de um laboratório ao outro. Isso constitui um grande desafio experimental. Em contraste, no cenário instrumental, influências causais diretas de uma parte para a outra não são proibidas. No experimento, essas influências foram implementadas por um canal de comunicação que permitiu que a escolha de medição da segunda parte dependesse do resultado de medição registrado pela primeira (um mecanismo conhecido como “feedforward de informação”). As medições foram feitas em pares de fótons emaranhados pelo time em Roma. Os experimentais adiaram a detecção do primeiro fóton em relação ao segundo através de uma fibra óptica longa, deixando assim tempo suficiente para que a segunda medição fosse modificada dependendo do  resultado da primeira medição. Essa adaptação de medição exigiu um dispositivo rápido para a troca no tipo de medição do segundo aparelho. Do ponto de vista experimental, este mecanismo de comunicação de resultados de medida é uma característica não trivial ausente em experimentos anteriores e que é interessante por si próprio. Além do Prof. Fabio Sciarrino, a equipe romana do Laboratório de Informação Quântica da Universidade da Sapienza em Roma foi composta pelos estudantes de doutorado Gonzalo Carvacho e Iris Agresti, o estudante de mestrado Valerio Di Giulio e o técnico Sandro Giacomini.

Além de sua relevância fundamental, os resultados também poderiam encontrar aplicações em processamento de informação. Isto se deve ao fato de que as violações quânticas de desigualdades instrumentais definem uma nova forma de não-localidade quântica, mais forte que modelos não-locais de variáveis ocultas que incluem comunicação unidirecional de resultados de medição entre as partes envolvidas. Isto pode ser relevante, por exemplo, em protocolos criptográficos e de geração de aleatoriedade sem o requerimento experimental de separação espacial grande. Uma nova área de pesquisa, tanto teórica quanto experimental, se abre em um cenário relativamente simples.

Por fim, é importante ressaltar que esta pesquisa foi realizada durante o pior corte em financiamento de ciência na história recente do Brasil, com vários pesquisadores brilhantes deixando o país pela falta de condições básicas para o prosseguimento de suas pesquisas. Neste sentido, a colaboração com o time experimental italiano foi crucial. Esta é uma história de sucesso em tempos muito difíceis, que mostra que ainda é possível produzir ciência do mais alto nível no Brasil desde que os recursos básicos necessários sejam dados. Infelizmente, o governo Brasileiro propõe um corte ainda mais profundo no orçamento para a ciência. Se a situação não mudar, histórias de sucesso como a dessa pesquisa estão em sério perigo.